sábado, 25 de outubro de 2008

Missionário das letras

Era tarde da noite. Eu ia passeando com a minha cadela por uma rua. A mesma rua tão escura que eu mal conseguia ver as casas, ou sequer a rua mesmo. Só a luz elétrica de algumas lojas ainda abertas é que iluminavam alguns trechos. Não havia postes.

Eu seguia em frente, o mesmo itinerário de sempre que fazia com ela. Ela gostava de caminhar comigo, andava sempre muito alegre e, a essa hora, nem fazia tanta força para correr ou puxava muito a coleira para ver alguma coisa. Acho que ela também não via muita coisa naquela escuridão toda da madrugada.

Engraçado é que mesmo sendo tão tarde, ainda há pessoas transitando por aqui. Percebo isso com uma certa curiosidade, mas também o medo de que algum deles seja perigoso. Entretanto, me tranquilizo por estar com uma segurança animal que, bem, em alguns casos, vale mais do que qualquer outra coisa. A segurança vê uma grande lata de lixo. Pede para parar, eu obedeço.

Enquanto ela faz as necessidades, eu olho para frente. Ali está o homem que sempre encontro quando passo por aqui - não necessariamente nessa mesma hora. Ele sempre esteve ali, desde que eu era muito pequeno, mas, não sei por qual motivo, a gente nunca se falou. Ele está sentado no seu banco, uma pequenina mesa de madeira a sua frente e mais outro banco a frente da mesa, escondido. Talvez eu nem saiba o que ele faz, ou anda fazendo. Curioso.

Minha cachorra termina o serviço. Continuo andando na direção do homem, os olhos fixos em seus movimentos. Começo a pensar porque cargas d'água ele vive ali, sempre esteve ali e eu nunca pensei em conversar com ele. E olhe que sou comunicativo. Estranho. Meus passos se aceleram de acordo com as passadas de minha cadela.

Nossa distância diminui a cada passo largo meu. O homem usa uma camisa marrom já muito surrada, um chapéu mais claro na cabeça - que, por sua vez, está abaixada, prestando atenção em algo que não sei identificar o que é. Penso que seja dinheiro, mas parece tão pouco. Não consigo ver seu rosto, mas seus movimentos exprimem uma tristeza que me dói. Dói tanto pela sua condição quanto por saber que eu nunca fui ali, falar com ele.

Agora estamos mais perto, a luz da loja atrás dele ilumina nossos rostos. Ele parou de mexer no que tinha nas mãos e levantou o rosto, uma expressão de despedida para a rua. Sua testa era cheia de rugas, habitualmente franzida. Tinha uma expressão envelhecida, apesar dos olhos ainda permanecerem com o mesmo brilho de sempre... Ele me vê.

Com um impulso, me aproximo dele e sento no banco à frente da mesa onde ele está sentado atrás. Dois bancos, uma mesa dividida, mas tanto sentimento. Meu caldeirão foi acionado, e agora eu não consigo mais descrever o que sentia. Seus olhos eram brilhantes, azuis, quase ofuscavam-me. Mas eu não desviei a atenção, estava hipnotizado. Não sei se ele percebeu o mesmo, mas ficamos num silêncio compenetrável. No entanto, ele foi mais rápido.

- O que deseja, senhor?

Fiquei meio desnorteado, mas não me demorei muito a responder. Perguntei-lhe o que fazia, em que trabalhava, e porque sempre esteve aqui. Ele respondeu que não sabia fazer nada, mas que quando era criança, seu pai lhe ensinou a escrever muito bem. Desde então, ele esteve sentado nesse banco, escrevendo cartas para as pessoas que não têm esse dom.

- Eu trabalho aqui desde que me entendo por gente; acho que desde quando aprendi a escrever com o meu pai. Ele também trabalhou aqui mesmo, em frente a essa loja. Minha mãe era dona dela, e por isso nós sempre vivemos nesse pedaço de rua. Até que minha mãe morreu de velhice e o meu pai se foi quando eu tinha idade o bastante para me virar sozinho. Acho que ele já deve ter morrido de solidão e tristeza, porque eu nunca mais o vi.

Eu estava estático, não conseguia falar nada, a não ser ouvir a sua história linda. Cada palavra que saía da boca dele me deixava mais intrigado comigo mesmo por nunca ter ido ali e conversado com ele e mais interessado por sua história. Ele continuou:

- Eu me lembro de você moleque. Uma pena que, quando você era criança, eu já estava com meus dezoito anos e não podia mais brincar contigo. Mas teria um grande prazer se pudesse.
- Você costumava brincar muito com os garotos da sua época? - consegui perguntar.
- Sim! Nossa, eu tinha muitos amigos por aqui. Era a mesma rotina de sempre: eu acordava cedo e ia escrever com o meu pai antes de ele sair para o trabalho - ele era ferreiro. Daí, quando ele ia trabalhar, eu ia brincar com os outros garotos. Na hora do almoço eu sempre comia na casa de qualquer um deles, quem estivesse mais disposto a me oferecer. Eu não comia muito para não fazer desfeita, mas os outros garotos sempre roubavam os doces das mães deles e dividiam comigo. Era uma época maravilhosa...

Quanto mais ele falava, mais seus olhos brilhavam, uma felicidade plena tomava seu rosto muito desgastado pelo tempo. Ele falava baixo e calmo, ninguém mais precisava ouvir a história da sua vida. Ou talvez precisasse, talvez um escritor poderia encontrá-lo e fazer da sua vida um sucesso. Ou quem sabe...

- Porque você não escreve seu livro? Que história de vida maravilhosa! - eu sugeri.
- Não sei bem ao certo. Uma vez eu tentei, mas ficou muito ruim, então eu desisti de escrever sobre mim. Talvez eu não tenha aprendido a escrever sobre mim, só pelos outros. Ou para os outros. Então eu escrevo para quem não sabe decodificar esses símbolos muitas vezes sem sentido, mas que tem muita coisa para contar. Tanto sentimento, tantas histórias. Cada pessoa vem com um presente novo para mim. E sabe, tem coisa melhor do que ganhar presentes todos os dias?

Não consegui responder, apenas me levantei do pequeno banco e dei-lhe algum dinheiro. Com muita humildade, ele aceitou e juntou ao monte que antes estivera mexendo. Apertei a sua mão com força e prometi - para mim mesmo - que ali voltaria mais vezes. Quando quisesse mandar uma carta ou até mesmo para ouvir mais sobre as histórias dele. Queria ouvir e sentir tudo o que ele passou. E, mesmo sabendo escrever, eu queria uma carta com os sentimentos daquele homem.

Então saí, de volta a minha casa com a minha companheira de sorte. Aposto que ela também sentia o que eu estava sentindo: o coração cheio de esperanças de um dia voltar a ver o homem e a consciência de que, indubitavelmente, existem presentes para cada pessoa. Os meus, eu ainda não sei se descobri, e não sei se vou ganhá-los ou conquistá-los, mas os dele eram colocar em palavras o que as pessoas tinham para dizer.

E ele adorava isso.