quinta-feira, 9 de julho de 2009

A outra

Caro Daniel,

Escrevo-te esta carta só para não deixar a casa sem nenhum documento, sem nenhuma razão qual você ficasse ciente. Talvez você me culpe por estar saindo assim, com tanto menosprezo, mas eu sei o que estou fazendo. Não precisa acreditar em mim de qualquer maneira, mas não se incomode de saber do meu paradeiro. Afinal de contas, seria bastante desagradável vê-lo correr atrás de mim; apesar de eu saber que não o faria.

De qualquer forma, escrevo não só para avisar de que estou indo embora, para sempre, mas também exprimo aqui os meus motivos. Estes cujo você também deve estar ciente. Não somos mais crianças e sabemos muito bem tudo o que fazemos. Porém, é uma pena que não podemos medir as conseqüências. Eu sempre soube, Daniel. Desde aquela noite que você saiu tarde e voltou somente na tardezinha do outro dia. Eu sabia, assim como sabe o marinheiro que uma tempestade está a caminho. Porém, havia algo dentro de mim que não me permitia acreditar. Até hoje eu não sei o que ainda me prendia ali, naquela casa. Talvez eu estivesse esperando os comentários das pessoas, ou que a intuição virasse certeza. Então, assim eles vieram.

Chegaram aos poucos. Começou com uma desconfiança da vizinha, um olhar torto do homem das verduras. Eles eram sempre os primeiros a saberem de qualquer coisa que acontecia naquela vila. Não se lembra, quando chegamos aí, eles foram os primeiros a nos cumprimentar, e a espalharem para todas as casinhas ao lado que haviam ocupado a casa antes vazia. Assim como eles foram os primeiros a nos cumprimentar, foram os primeiros a nos desconfiar. Não demorou muito para que as outras pessoas também soubessem.

No começo, achavam (e essa idéia também passou pela minha cabeça) que era culpa minha. Que eu não conseguia dar conta do meu próprio marido. Diziam que era minha culpa que cada vez mais aumentavam suas saídas, suas noites fora e chegadas ao fim da tarde. Mas como podia, se sempre que você chegava em casa, dizia-me que estava no trabalho, no jogo. E eu sempre te esperava com o café pronto. O café que você costumava dizer que era o melhor da vila inteira. Eu não entendia, no entanto, como meu café ficou tão amargo de repente, se eu nem mesmo troquei o pó ou mudei a quantidade de água. Não era culpa minha, então, concluí. Não era o café. Era você.

Eu costumava pensar nas noites que você estava fora, quais eram nossas roupas quando saíamos juntos. Algumas delas eu ainda tinha. Minha saudade era tanta que eu chegava a vesti-las e ficar horas me olhando no espelho ao lado da janela entreaberta. A vizinha me assistia com um olhar tristonho, e logo depois a vila inteira estava me olhando do mesmo jeito. Eu me sentia ínfima e impotente.

Depois, a raiva foi me atingindo. Ao invés de saudade, passei a sentir ódio. Cansava de imaginar você com ela, para onde você a levava ou o que fazia com ela. Quando passei a ver as marcas, fiquei a imaginar o que ela fazia com você, o quanto vocês se divertiam. Percebi, então, que a senhora do seu amor agora era ela, e não mais eu. Aí, foi a gota d’água quando, ao invés de duas ou três noites, você ficou uma semana fora. Eu contei no calendário. Para mim, havia chegado o fim.

Eu esqueci todos nossos encontros e desencontros, das roupas, dos presentes, dos beijos. Toda saudade que eu tinha simplesmente se dissipou. O ódio também foi embora, junto com o ciúme. Só ficou a ferida, a cicatriz de uma vida que tinha tudo para dar certo, mas você passou do ponto e agora eu não sei mais.

Agora, vou embora. Deixe que os vizinhos lhe digam notícias minhas. Não se preocupe, não se importe comigo. Eu vou em busca da minha paz. Vou dançar com outro par, para variar o amor. Vê se vario de você. Agora, vou-me, que não demorará para essa dor sangrar até secar.

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Inspirado primeiramente na música A Outra de Los Hermanos e talvez alguns resquícios de Um Par também deles.