quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Amanhã vai ser outro dia

Abriu a porta sem bater.

- O que está fazendo?
- O que você acha?

Ele estava sentado em frente ao piano, dedilhando as teclas sem produzir som. Um copo de whisky boiava no mogno, fazendo uma roda de água. Ao ver, pensou em reclamar. Mas, depois daquela tarde, uma briguinha por uma bobagem daquelas agravaria ainda mais a situação. Encostou-se na estante ao lado.

- Porque isso tudo?

O pianista encarou-o com um olhar óbvio. O outro abaixou os olhos.

- Achei que fosse legal. Pensei que você fosse gostar. Também não sabia que a reação deles seria daquele jeito. - mexeu nos dedos das mãos. - Eu jurava que ia ser diferente.
- É. Reparei. Você ficou todo vermelho. Todo mesmo, até o dedo dos pés. - fez uma pausa. Tocou uma nota no piano, baixinho. - Combinou com seu cabelo - disse quase sussurrante.

Deu um sorriso forçado. Um fiapo de lua minguante minguava do céu, entrando pela janela, deixando rastro no chão da sala. Olhou ao redor. Quase nada mais no quarto - só o piano, a roda de água no mogno, o copo de whisky, alguns caixotes perto da porta, e a estante que outrora estava cheia de livros. Agora, vazia.

- Não faz diferença. - começou o ruivo, olhando o rastro da lua - Me senti mal, com raiva, e ao mesmo tempo envergonhado. Era só a porcaria de uma reunião! As pessoas lá me surpreenderam. Eu achava que exatamente por eles já terem problemas com o mundo, aceitariam as coisas na boa. Mas foi uma merda. Juro como nunca fiquei tão frustrado em toda minha vida. Até o velho zelador nos olhou feio quando estávamos saindo. Imagino o que devem ter falado. Minha orelha já devia ter pegado fogo.
- Se fosse assim, estaríamos todo queimado. Aliás, você já está ficando quase todo vermelho de novo. Tsc. Deixa isso pra lá. Vem cá, vem.

Bateu de leve no banco do piano, afastando-se. Ele sentou-se pesadamente, emburrado. Cruzou os braços. Um leve rubor e o lábio formou um biquinho.

- Nhé. Seu bobo. Todo mundo é assim, você é que se faz de inocente e acha que as pessoas vão finalmente nos encarar como "parte da sociedade". São todos uns medievais, que não conseguem evoluir no tempo, ficam estancados e tem esse tipo de reação toda vez que algo "diferente" do cotidiano deles aparece. O pior é eles nos atacarem, como se a gente tivesse feito alguma coisa contra. Isso é o que mais me deixa puto - aumentou a voz, sem querer - É como se fôssemos as hienas novas da área, e eles as onças, prestes a nos devorar. O que eles querem é acabar com a nossa espécie! Mas todo mundo sabe que a gente só faz aumentar cada vez mais!

- Agora quem está ficando vermelho é você - interrompeu o ruivo.

Silêncio. Os dois soltaram um suspiro cansado. O vazio da casa se alastrava ao redor deles, e qualquer barulho a mais fazia eco. A última fala do pianista ainda  vibrava, imperceptível, e como se usasse de desculpa para mandar embora aquela frequência, o garoto de cabelos acobreados tocou o pequeno início de uma das músicas que eles adoravam. Sorriram um para o outro - boas lembranças tomaram conta de suas mentes.

- Esse lugar vai deixar saudade.
- Em alguns aspectos, sim. Mas eu já estou cansado dessa suspeita toda. Parece que todo mundo sabe que moramos juntos, e que trocamos saliva e alguns outros fluidos nas horas vagas.

O outro sorriu. Tinha um sorriso maravilhoso, os lábios grandes e pequenos buraquinhos nas bochechas. O ruivo apertou um desses buraquinhos, sorrindo também. Apesar de tudo, ainda estavam felizes.

- O mundo é gay - disse o ruivo.
- Não. Ainda não. Mas vai virar - ressaltou o outro.

Beijou-o levemente e, com a ponta dos dedos, de leve enrolou um fio do cobre cacheado que avolumava na cabeça do outro. Olhou-o nos olhos.

- Vamos parar de se preocupar com isso? Já estou cansado. - bocejou longamente, esticando os braços para trás. -  Que tal irmos para cama agora?

O ruivo soltou um suspiro e assentiu.

- Você é tão tranquilo. - disse ele.
- E você é muito irritadinho. - replicou o outro.
- Faço jus ao meu cabelo. - e soltou um sorriso abafado.

Levantaram, fecharam o piano e caminharam em direção ao quarto. Lá, a cama branca, sem lençol, só com dois travesseiros, deixava tudo mais vazio. Um último quadro pendurado na parede, alguns livros velhos e folhas de desenho espalhadas no chão. Nada mais. Deitaram na cama. O ruivo encostou-se no peito do seu melhor amigo, parceiro sexual e, num futuro mais próximo do que eles esperavam, marido. O outro passou o braço sobre os ombros dele e ajeitou a samba-canção de seda. Encaixaram-se, um nos braços do outro.

- As pessoas que se fodam. Deixa elas pensarem o que quiserem de nós. O que importa é que estamos aqui, e quanto tempo falta para irmos embora? Dois dias? É. Esse lugar não pertence a nós. Aliás, nós não pertencemos a esse país. - e dando um beijo na testa do ruivo, completou: - Eu te amo. É isso que importa. Vamos dormir, que amanhã vai ser outro dia.

- É. Boa noite.

Apagaram o abajur, deram um beijo estalado e finalmente, caíram no sono.