segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Obsessão

Você se arruma naquela manhã como se estivesse indo para a guerra. A maquiagem é sua pintura de batalha. Olhos com delineado preto, esfumaçado, muitas camadas de rímel. Blush rosa escuro e batom vermelho. Você se prepara como quem vai enfrentar o seu pior inimigo. De fato, ele é o seu pior inimigo, mas também foi o seu amante e melhor amigo.
Você tem vinte e um anos. Já não é mais a adolescente que ele conheceu, alguns anos atrás. Quer mostrar isso para ele, com sua calça legging, blusa transparente estilo quimono e botas de couro. Usa botas de salto para ficar da altura dele. Embora saiba que vai encontrá-lo sentado. Sabe que vai olhar diretamente nos olhos de safira que só ele tem.
Você ensaia no espelho: Nossa, desculpa por ter sumido. Eu estava magoada e não sabia como ia reagir quando te encontrasse de novo, depois daquela noite. Você coloca essa pintura no rosto e essas roupas para chamar atenção, porque sabe que ele gosta. Você sabe que ele sempre foi atraído por você, desde o primeiro dia de aula.
E aí está você, sua vagabunda carente, que adora se envolver com homens mais velhos. Aí está você, com essas roupas de adulta, tentando se igualar a ele, tentando arruinar toda o favoritismo que ele tem. Você sabe o que ele conquistou. Ele mesmo te contou como foi difícil. Agora, ele se tornou o melhor professor da faculdade e você quer arruiná-lo com sua obsessão.
A aula começa e você não presta atenção no que ele fala. Fita-o com olhares de serpente, querendo petrificá-lo. A sua vontade é colocá-lo numa gaiola e levá-lo para casa. Para o seu apartamento, não para a mansão onde ele mora com uma esposa e duas filhas. As filhas que você nunca chegou a conhecer, mas que você viu no perfil dele no Facebook. Você não cansa de visitar o perfil dele todos os dias, mesmo ele nunca tendo aceitado o seu pedido de amizade.
Você sempre quis mais do que amizade. E ficou muito claro para você, quando saíram juntos, que ele também queria. Era só um café, mas virou uma noite de muitas cervejas. Ele disse que precisava voltar cedo, mas acabou indo embora com você. Foi culpa da cerveja, você pensa em dizer para ele, isso não devia ter acontecido. Mentira. Era o que você mais queria que acontecesse.
Você espera pacientemente que todos os alunos saiam da sala. Aproxima-se fingindo que quer falar com ele sobre um assunto da aula. Mas ele sabe que não se trata disso. Você se senta numa cadeira em frente à mesa. Ele também se senta na sua cadeira de professor. O olhar dele está disperso. O silêncio pesa no ar.
Você começa: Ah, merda, me desculpa por ter sumido. Eu não queria que nada disso tivesse acontecido. Bebemos muito. Foi tudo culpa da bebida.
Eis você aqui de novo, tentando destruir o professor do ano. Você sabe que ele é sensível às suas investidas. Ele não responde enquanto você pede perdão, como uma criança que fez algo errado. Aquelas roupas de adulta que você vestiu começam a não fazer sentido. Ele suspira e você sente o hálito dele: cigarros mentolados. Iguais aos seus.
Os olhos dele correm pelos cantos da sala até que encontram os seus. São como dois topázios escuros, severos, mais velhos do que você se lembra. Isso não pode acontecer de novo, ele pronuncia com uma voz firme. A mesma que te mandou tirar a roupa quando vocês chegaram ao seu apartamento naquela noite.
Você sabe disso, mas insiste. Quer alimentar tudo o que sente por aquele homem mais velho. Você o deseja profundamente, uma necessidade antiga que vem se retroalimentando há anos. Sentada, aqui e agora, você é puro vício. Uma obsessão adequada às suas roupas de adulta.
Ele faz menção de se levantar. Alguém bate na porta e abre uma fresta. Ele dá um sorriso amarelo, nervoso. A pessoa na porta se engana e fecha. O silêncio novamente impera entre os dois. Você o encara com olhos de medusa. Ele desvia o olhar, volta à mesa, encara o celular, incomodado.
Ele diz: se você preferir, não precisa mais vir às aulas. Apenas faça as atividades que envio no site da faculdade. Eu não vou te reprovar.
Você sente um frio tomar conta do corpo. Percebe que ele está tentando te afastar, te rejeitar. Você sabe que merece isso, afinal, você que provocou essa história toda com suas investidas depois da aula. Mas o seu desejo é maior. Você reluta: vou continuar vindo, não se preocupe.
Quando ele se levanta, você se coloca de pé logo em seguida e vê que está da altura dele. Olha-o nos olhos, transmitindo o peso da sua necessidade, sua ânsia viciante passando para ele como eletricidade. Ele desvia o olhar novamente, dessa vez mirando a porta.
Mais um aluno abre uma fresta. É a deixa que ele precisava para fugir dali, mesmo sob o seu controle. Mesmo sob o seu olhar de águia por cima dos ombros dele, vendo-o se afastar e fechar a porta atrás de si. Você se vê sozinha na sala de aula. Sozinha, como sempre estará, para o resto da sua vida.

 Sozinha, como sempre estará, para o resto da sua vida        

Fotos: Unsplash

sábado, 19 de maio de 2018

Eu me entrego.


Qual é a forma do vazio?
Quando não há nada, o que sobra?
Quando estou só e não tenho nada a perder, o que resta?

O céu cai sobre mim. É manhã, os primeiros raios de sol começam a surgir, acordando o dia com sua luz e calor. Estou deitada na areia, de braços abertos, olhando. O vento sopra, suave. Não sinto absolutamente nada.

É absurdo acreditar na existência como um vazio. Passamos a vida inteira dando tantos significados aos nossos dias, às nossas atitudes, ao que falamos para os outros. O tempo todo estamos buscando significado, tentando encontrar nosso propósito, nossa missão nesse mundo.

Não há. Tudo que há é um grande nada, sem forma, sem som, sem gosto.
Apenas vazio.

Por muito tempo, eu acreditei que estava dando significado à minha vida. Acreditei que estava correndo atrás dos meus sonhos, que meu trabalho me satisfazia, que eu tinha um relacionamento agradável.

Acreditei que tinha uma vida satisfeita, completa, plena, embora sempre faltasse alguma coisa. Embora sempre existisse outro lugar pra ir, uma nova viagem a fazer, algo novo pra comprar ou até uma nova especialização. Acreditava que essa busca era o motor que me motivava a acordar todos os dias e seguir em frente.

Agora, aqui deitada na areia da praia, olhando o céu amanhecer, percebo como tudo poderia ter sido bem mais simples. Tudo teria sido leve, como essa brisa da praia, se eu apenas tivesse aceitado o vazio que é a minha existência.

Como dar significado a algo que você não sabe definir?

Deitada na areia, olho para a imensidão acima de mim, e a impressão que dá é que o céu me abraça, na sua forma ovalada. O céu me acolhe e envolve todo esse mundo, o planeta terra na sua completude e grandiosidade. Você consegue ver a delicada película que dá forma ao céu?

O amanhecer é impressionante. Uma mistura de cores se apresenta na minha frente, como pinceladas que vão delicadamente sendo colocadas numa tela sem bordas. Não há bordas no céu. Não há forma. Um nada que envolve tudo. Pensar nisso, neste momento, me traz uma sensação de paz. Mas eu sei que essas sensação é passageira, pois se eu for mais fundo, percebo que não há sensação. Não há o que sentir, o vazio me engole.

Ao mesmo tempo, sinto tudo. A temperatura. A brisa. Os raios de sol. Ouço as ondas do mar como se elas estivessem dentro de mim. Se eu fechar os olhos, sinto como se deixasse de existir. Eu posso morrer agora e ainda sim estarei viva.

Em meio a essa imensidão, o vazio não me parece tão assustador como eu costumava acreditar. Na verdade, é até reconfortante. Meus pensamentos vêm e vão, eu os deixo serem levados pelo vento, deixo-os serem carregados pelas ondas do mar. Tudo está parado, ao mesmo tempo em movimento.

Há uma incrível sensação de paz quando não há nada para fazer ou nenhum lugar onde estar.
Há paz quando toda culpa e pesar do passado se transformou num sonho que eu já nem lembro mais.

Até essas palavras aqui parecem pesadas para o que vivencio neste momento. Elas tentam dar forma ao vazio. Tentam explicá-lo, conceituá-lo, defini-lo. Não há definição.

Eu sinto minha existência se complementar com a areia. Com os raios de sol, agora mais quentes. Com as nuvens no céu e a brisa. Fecho os olhos e sinto meu corpo leve. Sinto meu respirar, suave.

Tudo está parado e ao mesmo tempo tudo é vida.

Uma sensação incrível de alegria me inunda. Eu não tenho nada. Não quero ser nada. Minha existência é completamente sem importância. E isso é incrivelmente libertador. Eu sou como uma brisa leve, sem forma, sem gosto, ao mesmo tempo se adaptando a qualquer ambiente. Misturando-se ao que é apresentado aqui e agora. Tomando a forma que for necessária no momento. Eu não sou nada além desse movimento que inspira e expira.

Canso de tentar definir o que sinto em raciocínios. Canso de tirar conclusões. Este momento é único, como todos os momentos da minha vida. Tudo o que vivi, se transformou num sonho, cujas partes eu lembro só algumas. Todas as projeções que crio para o futuro também parecem sonhos, momentos que eu não vivi, mas minha mente experimenta, baseado no que tenho de referência na minha memória.

A única coisa que pode importar, de alguma maneira, é este momento.
Aqui, agora.

Estou deitada na areia de uma praia deserta e o vazio toma conta de mim.
Tudo está vazio e ao mesmo tempo cheio.

Eu me levanto. Grãos de areia voam por mim, pinicando minha pele e o meu rosto. Eu respiro. O sol agora está mais visível no horizonte. A luz ilumina e esquenta minha pele. Eu tiro a roupa. Caminho ao mar, um pé depois o outro. As ondas molham meus pés. Caminho para dentro, sem olhar para trás. Uma onda mais forte tenta me derrubar. Eu resisto e sigo em frente. Mais fundo. Sinto meu corpo ser levado com o movimento das ondas. Mais fundo. As ondas fortes me derrubam, e eu só me deixo levar. Levanto-me e sigo a caminhar para dentro do mar. Mais fundo. As águas cobrem meu peito, meus pés se afastam do chão. Eu me deixo levar por aquele momento. Meu corpo é leve. As ondas me carregam sem destino certo.

Eu me entrego.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Cortina de Miçangas

Você colocou uma cortina de miçangas entre nós. Cortina de miçangas que dá pra ver um pouco do que está do outro lado, mas não tudo.
Eu estou aqui de porta aberta, deitada no sofá, te convidando e esperando você entrar. Você está aí, na entrada de casa, segurando a porta entreaberta e conversando comigo, sem saber ao certo se entra ou não. Sem saber se fica por mais alguns minutos ou se vai embora sem dizer nada.
Em algum momento, com cautela, você decidiu entrar e trespassar a cortina de miçangas e me olhou com olhos de amizade. Olhos que transmitiam uma mensagem de cor azul claro como o céu.
De repente, assim no tempo de um piscar de olhos, toda magia criada na minha cabeça, todos os sonhos, desvanesceu.
Fiquei um pouco em choque no começo, um processo interno que talvez você entenderia, já que me conhece tão bem. E esperançosa como sou, ainda fiquei com aquele gostinho amargo do fim na boca, depois que você foi embora. Ainda deixei comigo minhas utopias, que se tornam ouro com o passar do tempo.
Mas, em algum momento daquele fim de semana de dezembro, eu consegui te deixar pra trás. O seu novo corte de cabelo me ajudou a te esquecer. As nossas atitudes perante o outro também deixaram minha mente mais azul cor do céu. Por fim, fiquei feliz de você ter tido coragem de passar a cortina de miçangas entre nós, ficar de pé do meu lado do sofá e dito com a sinceridade que as boas amizades pedem: 
- Quero compartilhar uma coisa contigo. Afasta aí pra eu sentar do teu lado. 
Aturdida, inexpressiva, vi aquela cena e demorei alguns segundos para raciocinar. Então levantei e respondi:
- Senta aí, vou pegar um vinho pra gente tomar.

domingo, 17 de julho de 2016

Primeiro, o amor. Depois, o desencanto.



"Então, quando não havíamos avançado sequer dois quilômetros, vimos dois carneiros com chifres enormes sobre uma colina, descendo apressadamente por uma crista de cascalho. Mais uma vez paramos o carro e saltamos. Muito embora estivesse terrivelmente frio no alto das montanhas, ficamos observando aquelas duas criaturas até que elas também desaparecessem dentro do bosque.
Seguimos adiante e ficamos ambos quietos, digerindo a aparição desses animais em nossas vidas, assim como o seu significado. O que é um cervo? O que é um carneiro com grandes chifres? Por que algumas criaturas nos atraem e outras não? O que são criaturas?
Pensei nas minhas próprias preferências. Gosto dos cães porque eles amam sempre a mesma pessoa. Sua mãe gosta dos gatos porque eles sabem o que querem. Acho que, se os gatos tivessem o dobro do tamanho que têm, provavelmente seriam proibidos. Porém, se os cães tivessem até mesmo três vezes o tamanho que têm, ainda assim seriam bons amigos. Pense nisso".

Trecho do livro "Primeiro o amor, depois o desencanto" de Douglas Coupland. Uma obra literária que sempre esteve presente na minha vida. Vira e mexe eu leio trechos desse livro, alguma coisa sempre me remete a ele.