quarta-feira, 26 de março de 2008

Lágrimas no céu

O dia havia sido exaustivo, exatamente como pressuposto. Abriu a porta e olhou a grande sala o engolir em meio a escuridão deserta do apartamento. Não acendeu todas as luzes, apenas a do hall.
Lançou seus arquivos e pastas em cima da escrivaninha e percorreu sua sala na mesma penumbra, transpassando-a e indo em direção ao aparelho de som.
Apertou o botão "Play" e os toques do violão começaram a entrar nas suas orelhas. Conhecia a música. Mas não estava programado para que ouvisse-a quando chegasse em casa. Apenas colocou-a para tocar.

Passou por cima do tapete vermelho e empoeirado, andou até a varanda, encostando-se na pilastra. A chuva lá fora começava no prédio a sua frente. Esse efeito da natureza ele sempre presenciava, e ficava curioso todas as vezes ao ver a nuvem deslocar-se primeiro no prédio da frente para depois chegar ao seu e molhar sua varanda. Uma chuva fina e espraiada vinha em sua direção e o molhou no rosto, na pele das mãos, no cabelo grisalho. Fechou os olhos, sentindo o gelo da água que batia na sua face.
Apertou a ponta que o apoiava na varanda e, ainda de olhos fechados, sentiu uma lágrima escorrer pelos seus olhos e misturar-se à frieza da chuva. Impulsionou seus ombros e esticou seus braços, como se fosse cair para trás; e assim continuou sentindo a chuva fria em seu rosto misturar-se com suas lágrimas quentes.

Ordenou-se de novo, passando as mãos pelo cabelo e enxugando as lágrimas; em vão. Posicionou seus cotovelos no apoio da pilastra e, observando o chão que lá em baixo estava molhado, as lágrimas voltaram a rolar por sua face.
Não podia lembrar de tudo o que havia acontecido. Era forte demais para o seu viver, para sua essência. A forte dor dentro do seu peito o consumia por completo. Coisas não voltariam jamais.

Abriu os olhos lentamente e olhou para baixo, tentando desviar a atenção do chão, tentando desviar a atenção da cena que repetia-se irrecusavelmente em sua mente. Uma gota de chuva passou e caiu pelo seu rosto, misturada a suas lágrimas. Conseguiu visualizar o rosto da criança com medo que caía do prédio. Abrindo os olhos com mais força ainda, espantou-se e esticou os dois braços em direção à gota. O rosto desesperado de sua criança caía e parecia pedir desesperadamente por ajuda, mas sem mexer um centímetro do lábio. Seus olhos bastavam para expressar a angústia que sentia espelhar-se na gota de chuva que caía à frente dele. Então, por destino, o vento levou-a para longe. Longe de quem pertencia.

Voltou os braços para a varanda e afastou-se vagarosamente. Não deu as costas de primeira à chuva lá fora, mas observava o espetáculo com as feições assustadas. Tocou no gélido vidro da porta da varanda e, ainda de costas para a mesma, abriu-as e entrou na sala de onde viera. A música estava no fim.

Apreciando os últimos toques do violão que saíam do aparelho de som, ficou pensando sobre a cena que acabara de ver. Seria mais uma coisa para qual ele ficaria pensando; e sofrendo. Talvez, porém, essa cena tenha-lhe servido de aconchego.
Desligou o som e caminhou lerdamente até o banheiro, retirou as roupas e pôs-se a tomar um banho bem gelado.


Eric Clapton é um cantor dos anos sessenta-setenta-oitenta-noventa. Sua carreira é longa e famosa por todo o universo do blues. Nascido em 1945, na Inglaterra, ganhou sua guitarra aos 13 anos de idade e passou a usá-la como instrumento de trabalho. Fez muito sucesso no Reino Unido quando - de início - integrou-se com a banda Yardbirds. Eric tornou-se um dos guitarristas mais conhecidos e apreciado de toda a Inglaterra. Contudo, quando Jimmi Hendrix apareceu, Eric percebeu que havia ali um novo e imbatível adversário, mas com um carisma estupendo igualado a sua tecnica com as guitarras. Eric compôs muitas músicas marcantes - uma delas é Layla e Tears in Heaven - e, para literatura, ele é considerado um 'ultra-romântico' pela elegia e o amor não-correspondido e discriminado do guitarrista nas músicas.

A música Tears in Heaven foi escrita pois, em 20 de março de 1991, seu filho com a modelo italianda Lori Del Santo, de quatro anos de idade, cai de um apartamento do 53º andar. Eric também compôs My Father's Eyes e Circus Left Down depois do acontecido.




*Nota da autora:

O conto que eu escrevi foi em função da música Tears in Heaven dele. Hoje, assistindo a aula de Literatura e estudando essa música, eu fiquei pensando em como é a dor de perder um filho. E percebi, pela milionésima vez, que é algo que não há como mensurar, que realmente só sabe quem passa; e espero nunca ter de passar por isso nem desejo isso à ninguém. Um filho é realmente uma dádiva e não tem como simplesmente entender que, depois de receber a mesma, consiga fazer algum mal àquela criança. A criança em si é um bem divino e tê-la em mãos é um presente valiosíssimo. Então, é preciso cuidar bem desses presentinhos preciosos.



Letra da música:

Would you know my name if I saw you in Heaven?
Would it be the same if I saw you in Heaven?
I must be strong and carry on,
'Cause I know I don't belong here in Heaven.

Would you hold my hand if I saw you in Heaven?
Would you help me stand if I saw you in Heaven?
I'll find my way through night and day,
'Cause I know I just can't stay here in Heaven.

Time can bring your down; time can bend your knees.
Time can break your heart, have you begging please, begging please.

Beyond the door there's peace I'm sure,
And I know there'll be no more tears in Heaven.

Would you know my name if I saw you in Heaven?
Would it be the same if I saw you in Heaven?
I must be strong and carry on,
'Cause I know I don't belong here in Heaven.
'Cause I know I don't belong here in Heaven.