- Sobre o quê?
- Isso - mostrei-lhe um papel. Nele estavam desenhados dois corações. Um com o nome AMOR em vermelho e o outro com PAZ em amarelo.
- A paz não é amarela. É branca. - soltou um sorriso familiar demais para mim.
- Foi a cor mais clara que encontrei. Caso não fosse esta, não teria nada escrito.
- Só o coração desenhado - ele completou.
- É - concordei.
É verdade que eu consigo viver sem amor. Na verdade, nunca fui muito de ficar ardendo por qualquer garoto. Ainda mais que não há um sequer que me chame atenção o suficiente - ou ao menos não chamava. E nenhum deles parecem me notar, também. Mas os amores que não são "ardentes" acabam me fazendo melhor que um caldeirão borbulhante aqui dentro.
Acontece que, algumas vezes, conhecemos pessoas que podem nos mudar. Não por completo, até aí ninguém conseguiu - pelo menos comigo. Mas pode mudar algo de nós, nos fazer pensar e refletir sobre algumas coisas que antes pareciam estúpidas demais. E era o que estava acontecendo comigo.
Não era o fato de ele ser um garoto, um heterossexual, que isso me deixava mais excitada. Eu sempre me identifiquei mais com os homens do que com as mulheres; mulher geralmente é muito fresca com as coisas. Homens são bem mais despojados - com exceções, claro. Mas, bom, na maior parte do tempo, um homem não vai se importar se você preferir não falar mal de ninguém, ou até não falar nada, só para ter um assunto na mesa; comparando às mulheres, que mal conseguem parar de mexer os lábios. Então, esse era o meu caso.
Quando eu o conheci, estávamos numa lanchonete. Acho que destino nos laçou naquele momento, porque pedimos o mesmo sanduíche e o mesmo suco para almoçar.
- Você sempre pede isso? - ainda me lembro do seu tom de voz ao mesmo tempo interessado e surpreso.
- Sim, sempre. - E não disse mais nada, o lanche havia chegado. Sentei na mesa que tinha posto minha bolsa e meu caderno, sozinha. A mesa era pequena demais para mais de duas pessoas. E ele era grande o bastante para ocupar o mesmo espaço.
Mesmo assim, ele veio até minha mesa, acompanhando-me no lanche. Isso demonstrou sua teimosia que, tempos mais tarde, pude perceber que era um de suas características marcantes. Com aquele olhos grandes que quase me devoravam - assimilando-se à forma como comia o sanduíche - ele apenas me olhava e não dizia nada. Eu comia muito devagar, tentando entender o que ele estava fazendo ali.
Nós nunca fomos de nos falar muito, até esse dia. Como eu disse, algo nos enlaçou e nos aproximou de uma forma inexplicável. Repentinamente, quando terminamos o lanche, ele me acompanhou e esperou o ônibus comigo na parada logo afrente da lanchonete. Era estranho demais para mim, até hoje esse episódio foi inexplicável. Mas ele sempre foi assim, meio sem explicação.
Acabamos por conversar sobre coisas que eu, antes dele, não via, não ouvia, sequer percebia. E ele não pegou na minha mão, nem jogou indiretas, nem aproximou seu rosto do meu. Apenas jogamos conversa fora, suas palavras soltadas da boca, me envolvendo como uma serpente.
Pouco tempo depois, ele já frequentava minha casa, havia conhecido a minha mãe, tudo estava indo da melhor maneira possível. Até que o momento chegou.
- Vai, diz, o que você prefere? - Estávamos no meu quarto. Ele trouxera seu caderno e o segurava como se fosse um bem precioso. Eu o mostrava o papel desenhado.
- Entre paz e amor? Defina paz e amor. Há vários significados para essas duas pequenas palavras. - Papas-na-língua? Essa palavra não está no vocabulário dele.
- Esta paz é a paz de espírito. E o amor não é o de "namorado". - afirmei e continuei - Para ser mais direta, estou perguntando se você consegue viver sem amor, só com um bem-estar constante.
- Boa pergunta, garota. - eu odiava quando ele me chamava assim. Mas o que eu disse? Teimosia era seu lápis. E eu acho que era seu papel. - Está aprendendo com o mestre, não é?
- Talvez - e assenti. Não tinha como mentir, não é? Ele era um senhor Mestre para mim. - E aí? Vai, me responde.
Ele pegou o papel das minhas mãos sem nenhuma delicadeza - esse não era seu forte - e analisou os dois corações. Pensou por um tempo, enquanto eu consultava o relógio. 15h45.
- Por que a paz está dentro de um coração? - audacioso.
- Porque ela também pertence à você. Se estivesse fora, seria um motivo para sua paz derivar do meio em que vive, e não de você mesmo.
- Está querendo dizer que eu quem faço a minha paz? - outra vez. Ele não cansa, mas eu já estou acostumada.
- E a dos outros também - achei uma boa resposta depois de dois segundos pensando.
- Não dá pra viver sem amor, por mais idiota que pareça. Aposto que ninguém consegue ser feliz sem isso. Do mesmo jeito a paz. Um bem-estar próprio torna um dia mais límpido e feliz. As coisas não parecem tão complicadas e foscas como aparentam. Para mim, as duas se completam. Não que seja somente isso do que precisamos, mas elas se completam. - tudo isso ele me disse como um discurso. E eu gostei.
Rasgou uma folha do caderno velho que segurava e pegou uma caneta vermelha. Desenhou um coração grande, quase do tamanho inteiro da folha. Pegando um lápis de cor vermelho e um amarelo, escreveu as duas palavras que marcaram nossa conversa do dia: Paz e amor.
Mais abaixo, eu completei, de caneta azul mesmo: Se completam, como nós dois.
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Eu sumi um tempo por causa do meu computador. A fonte queimou e teve de trocar - mas não demorou muito, graças! Agora estou de volta e já agradecendo à Maria Fernanda pelo selinho mimoso:
Com o Prêmio Dardos se reconhecem os valores que cada blogueiro mostra cada dia em seu empenho por transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais etc..., que, em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto dentre suas letras, entre suas palavras.