- O que você acha que eles estão fazendo agora? - perguntou ela, levantando as sombrancelhas brancas
- Não sei, mas estou curioso. Que tal chegar mais próximo?
Levantaram e desceram as escadas ao lado. Sentaram novamente. O lugar era azul e o dia estava claro.
- Agora posso ver. Olhe, aquela garotinha. Ela era minha vizinha. Nós brincávamos de pega-pega e ela sempre caía no chão e ficava chorando e rindo ao mesmo tempo. O que ela está fazendo? Aquilo na frente da casa dela é um caminhão? Porque ela carrega todas aquelas caixas?
- Eu acho que ela vai se mudar, querido - disse a mulher de voz paciente ao lado dele. - Acho que ela está indo embora.
- Mas eu nem terminei de brincar com ela. Aliás, eu nem lembro muito. Só lembro que estávamos na rua correndo, e eu estava muito perto de pegar ela, daí veio alguma coisa muito brilhante atrás de mim então não lembro de mais nada.
O garotinho moreno parou de falar, a velha também não falou nada, os dois ficaram olhando a garotinha ir e vir segurando vários caixotes. A mãe dela falava com um dos caras do caminhão e fumava. Parecia estressada.
- Eu acho que ela não está gostando de alguma coisa ali - disse a velha e apontou para a mãe, que agora discutia fervorosamente com o homem do caminhão
- Ah, é a mãe dela. Ela sempre é assim, nervosa, qualquer coisinha fica gritando e discutindo com todo mundo. Um dia depois da aula eu passei na casa dela para saber se Mirelle estava lá, Mirelle é o nome da minha vizinha, daí a mãe dela atendeu a porta de camisola, com um copo na mão e um cigarro na outra. Não estava bem, falou, não, gritou algo muito confuso e bateu a porta na minha cara.
- Nem todo mundo tem paciência com crianças, meu bem.
- Mas ela não tem com ninguém.
A mãe continuava a discutir com o cara do caminhão, a menina ainda ia e vinha com várias caixas. No resto da rua mais nada acontecia. Na verdade, todos pareciam envoltos por uma onda de tensão e medo. Os vizinhos, as casas, os postes, os carros, as árvores, os pássaros, o céu azul claro e até as nuvens que eles estavam sentados sentia uma espécie de medo da reação ou da mulher ou do motorista do caminhão. Eles mesmos sentiam um pouco daquilo. Até que, dando uma tragada muito forte no cigarro, a mulher parou de falar e foi ajudar a filha.
- Uma pessoa dessas nem merecia uma filha. Coitada da criança. - disse a velha, e de repente suas sombrancelhas brancas como as nuvens ao redor deles se fecharam e ela entrou num profundo mar de lembranças.
O garoto percebeu.
- Alguma lembrança, vovó?
- Sim... Talvez... É que lembrei da última vez que vi minha netinha. Ela estava tão linda num vestido rosa cheio de florzinhas que eu bordei. Era seu aniversário de quatro anos e ela veio me dar um abraço e um beijo apertado - esticou a palavra apertado e envergou ainda mais os ombros, como se ainda pudesse sentir. - Parecia que ia durar para sempre. Depois, ainda a vi saindo saltitante do quarto, indo brincar, e imaginei ela correndo pelo gramado da casa, rindo e brincando com seus amiguinhos. Imaginei ela no balanço, para lá e para cá, pegando cada vez mais impulso até quase virar. Imaginei ela subindo nas árvores e catando as frutas, depois descendo, com o vestido novo todo sujo, e tomando refrigerante. Depois, foi só escuridão. Mas eu sabia que um sorriso havia permanecido no meu rosto.
- Quem sabe essa menina não é a mesma que brincava comigo, vovó? - perguntou o garoto, olhando para a velha. Ela tinha olhos castanho-escuros e cabelos brancos como as sombrancelhas.
A velha não respondeu. Não sabia. O moreno continuou:
- Podemos ver tudo daqui, vovó. Tudo o que quisemos. Quem sabe não podemos ver uma situação antes dessa situação acontecer? Quem sabe não podemos controlar essas pessoas, e fazer de tudo para que elas não caiam, não se machuquem, nem sejam atropeladas nem durmam para sempre?
- Não podemos fazer isso, querido. O tempo já é controlado por um cara forte e barbudo, que bate num cajado toda vez que você tenta contrariá-lo.
- Mas podemos proteger essas pessoas. Elas serão nosso amuleto da sorte. Assim, nossa obrigação é protegê-los, guardá-los em um lugar muito especial para que nada de ruim aconteça a eles.
- Tudo bem, meu bem. Podemos pensar assim, que protegemos essas pessoas de todo e qualquer mal, mas um dia eles vão ter que passar por coisas essenciais a vida deles, e nem sempre essas coisas serão boas. Há males que vem para o bem. Então, você pode protegê-los, mas não pode controlá-los.
O garoto fitou o caminhão fechar as portas de ferro atrás, e o homem que a mãe estava discutindo saiu dirigindo. A mãe estava ao lado da filha e fumava de novo. Acabou, jogou no lixo e puxou a menina para dentro pelo braço.
- Eu vou te proteger, Mirelle. Você vai ver. Nada de ruim vai te acontecer, a não ser as essenciais, como vovó disse. Eu vou te proteger de qualquer mal. Eu vou ser teu anjo da guarda.
E, deixando uma lágrimar rolar pelas bochechas cor de chocolate, recebeu o abraço apertado que a velha de sombrancelhas feitas de nuvens tinha para oferecer.