quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Ainda precisaria...

Uma hora, bateu o sono. Seu companheiro de estradas vazias todas as manhãs, quando acorda, ainda desacordada. Viaja com ele perambulando por suas têmporas, pairando seu nariz e fechando seus olhos. Incrível, ele só chega de manhã. A noite é um dilema. Ele sempre sai pra passear.

Mas não, essa noite. Essa noite ele veio com toda força, fazendo-a cochilar na cama. Assistindo à um programa qualquer na TV, apenas adormeceu. Não sentiu nada, nenhum peso, nenhuma dor de cabeça. Nem precisou tomar os calmantes! Nada. Apenas dormiu. Em silêncio.

Ela dormia calmamente, como um bebê. Um esboço de sorriso estampado no rosto. Uma testa franzida. Coisas habituais misturadas à novidades. E sentia. Sentia que estava parada, ali, encostada naquele colchão e com a cabeça no travesseiro. Sabia que ficaria ali e não sairia, talvez, nem se lhe implorassem. Aquela era sua posição mais confortável.

O clarão da lua invadia o quarto. Naquele momento, uma áurea azulada, fosca, pôs-se diante dela. Tinha sua fisionomia, mas estava de olhos abertos. Não era de meter medo, pelo contrário, até seria bonita de se ver. Dava uma ótima pintura.

A alma levantou-se, dobrando o corpo. O cordão de prata estaria se quebrando brevemente. Essa seria sua última viagem. A alma pareceu sentir um calafrio quando esse pensamento veio à mente da menina deitada na cama. Tanto que tremeu. Mas prosseguiu. Precisava aproveitar o momento, único e último, de sua viagem.

Levantou-se por inteira e saiu, sem abrir ou fechar a porta. Atravessou toda a casa numa rapidez infinita - quase impossível de ver. Assim que encontrou-se na rua, sentiu a brisa da madrugada lapear seu rosto, fazendo com que seus cabelos voassem em círculos, acompanhando os cachos. Quase uma ilusão de ótica.

Quando chegou à praia, não perdeu tempo em tirar as roupas que pesavam em seu corpo e entrar no mar - nua, completamente. A brancura do seu corpo destacava-se no meio da negritude oceânica. Sentia as ondas levarem-na e trazerem-na, balançando seu corpo.

- Ainda precisaria desse balanço.*- resmungou para si mesma.

Era inacreditável que tudo o que ela teve, o que ela teria, fosse acabar tão cedo. Seria, de fato, quase impossível. Mas não, era possível, sim.

Vestiu suas roupas de novo e saiu a perambular pela cidade. Passou pelos bares, todos fechados, com bêbados e mendigos nas suas calçadas. Não os importunou, e seguiu em frente. Passando por um dos pontos turísticos da cidade - O Hotel - e chegando a uma quadra onde costumava tomar açaí depois de partidas de vôlei. Sentiria tanta falta de tudo.

Chegou ao shopping - que ficava de frente para a praia -, onde lembrou-se de seu primeiro beijo. Foi ali, onde estava parada, exatamente como aconteceu.

- Ainda precisaria desse gosto. - resmungou novamente para si.

Caminhou mais e mais, indo em bairros que, enquanto carne e osso, jamais teria a coragem de pôr os pés. Passou e viu a situação deplorável que aquelas pessoas se encontravam. E sentiu pena - era a única coisa que poderia sentir, afinal. Nada mais poderia fazer. Estava se despedindo.

Pôs-se a andar em busca do seu passado. Das lembranças. Percorrendo tudo degradativamente.
Passou por casas de amigos nunca mais vistos, lembrando de como era bom os tempos em que morriam de rir. Lembrou da sua amiga que incentivou-a a ler. Pensou em ir à cidade vizinha, que era onde ela estava, mas depois viu que não adiantaria - ela estaria dormindo.

- Ainda precisaria desse sorriso. - dessa vez ela sussurou para si mesma.

Voltou ao seu antigo colégio. A imagem dela mexendo num coração na sua aula de Biologia apareceu na sua frente, como um filme. Um déjà-vu claríssimo. Suas mãos estavam meladas de sangue - mas protegidas com a luva. Uma mecha de seu cabelo caiu no seu rosto. Não podia tirar, sujaria seu rosto com o sangue do coração que analisava. Pediu a uma colega que o fizesse e voltou a sua experiência sangrenta. O coração não pulsava - mas estava quente.
Um coração.

Mais tarde, lavou suas mãos ao lado de uma menina que tinha a certeza de que seria uma bióloga de caráter.
E foi.

- Ainda precisaria desse reconhecimento - sussurrou.

Sua viagem estava no fim - a madrugada estava se despedindo, trazendo o Rei dos Astros. Ela rogou para que ficasse mais um pouco, implorou para sentir o ardor do sol pela última vez, suplicou para um último suspiro de saudade. Infelizmente, sua viagem estaria no fim. Não poderia mais fazer nada - apenas voltar

Ao regressar para casa, trouxe consigo uma decisão: quebraria de vez o cordão prateado. De uma vez por todas, acabaria com toda aquela tortura. Não seria por sua vontade, muito menos pela dela, apenas teria que acontecer. Estava predestinado.

Deitou-se por cima dela de bruços, deixando as pernas abertas de apoio. Olhou-a nos olhos fechados de um bebê. Um bebê que nem teria descoberto o que era a vida, nem tinha aberto seus pequenos globos oculares. Recém-nascido. Havia uma faca debaixo da cama, e ela pegou-a. Analisou a faca por dois segundos, pronta para fazer o que devia.
Lágrimas brotaram nos olhos das duas. Um momento aflito, mas preciso. Um mal necessário. Algo de muito ruim estaria para acontecer, e seria melhor evitar cedo.

A áurea azulada e ofuscada pela luz da tv pousou a ponta da faca onde ficava o coração da menina deitada no colchão. Com uma força incontestável, uma tristeza imensa e lágrimas brotando dos olhos, penetrou de uma vez só a faca no seu coração. Um coração cheio de impurezas indesejáveis pela própria dona. Um coração com um fim fadado - o de ser analisado por mãos desconhecidas em uma sala gélida. Não sentiria nada.

Um clarão imenso tomou conta de todo o quarto por quase três segundos. Gritos e apelos foram ouvidos por ninguém. Um sussuro pegou-a de surpresa no ouvido.

- Ainda precisaria desse coração. - e ainda deixou um suspiro de presente.



Com a força do suspiro, porém sem perceber, ela acordou. E descobriu que estaria morta, para sempre. Morta por dentro.

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* - Frase baseada na música Sway dos The Kooks.

PS.: O tal "cordão de prata" é uma coisa de projeção da consciência. Ele é quebrado quando a pessoa sofre uma morte biológica (o que, no caso do conto, facada no coração não deixa de ser biológico, eu acho). Então, se algo tiver errado sobre isso, me desculpe tá? Todas minhas informações provieram do José Wikipedia.

PS.²: Desculpem o texto gigantesco. Mas, bem, temos blog para ler, não é?