Assim que saí da sala de parto, mal pude segurar meu bebê. Ele era tão, mas tão pequeno que quase não me dei conta de sua presença. Seu choro ecoava pelas paredes amareladas do hospital e me deixava zonza. Acabaram de tirar-lhe de mim.
Estavam me levando para um quarto reservado. Já tinham me lavado, não estava mais com aquele sangue grudado em mim. Não sei como, mas o hospital, apesar de público, tinha um atendimento razoável. Nada luxuoso ou glorioso demais. Ninguém filmou o nascimento do meu filho - Gabriel, nome do meu anjo.
Quando me colocaram com cuidado em cima da cama, senti o frio que estava fazendo. Não havia ar condicionado no quarto - é claro - mas as janelas estavam abertas, as cortinas esvoaçantes. Estremeci e vi que uma das enfermeiras notou. Tirou da gaveta uma manta cor-de-rosa grande e grossa e pôs nos meus braços e saiu.
Não consegui desdobrar a manta. Ela estava no meu braço do mesmo jeito que meu filho estivera. E agora ele estava tão longe de mim. Não sabia onde ele poderia estar, então fiquei ninando a manta por algumas horas; sem perceber o tempo que passava e o frio que aumentava.
Quando dei por mim já estava anoitecendo - e traziam meu bebê pela porta do cômodo. Não tive a primeira chance de segurá-lo, os dois médicos que o acompanhavam, um o segurando e o outro com uma prancheta na mão, ainda fizeram anotações, analisaram e mecheram no meu anjinho. Admito que fiquei com ciumes e quase gritei, mas me controlei.
Tempo demais segurando-o, resolveram dar-me o meu Gabriel. Minha criança, minha vida estava ali, em meus braços, e por tanto tempo. Não tive tanta chance de segurá-lo antes e agora os minutos pareciam inexpressivos de tão rápidos. De repente, já estava com os olhos molhados, as gotas caindo na sua testa, molhando seu rostinho lindo.
À medida que as lágrimas caíam, menos seu rosto eu conseguia visualizar. O rio que me brotava inundava a mim mesma, me tampando sua visão gloriosa. Comecei a ver fatos singularmente familiares se espelharem pelas gotas. Vi quando eu tinha quatro anos e usava um vestido da cor do sol, rodado. Senti de novo a sensação de rodar na grama do jardim da casa do meu avô; senti o ardor do sol no meu rosto, queimando, gostoso. Vi meu avô me assistindo com um sorriso satisfeito nos lábios. Fechei os olhos num aperto, coração na mão.
Abri-os de novo e a chuva de lágrimas voltou, agora com uma intensidade diferente. Eu ainda estava vendo as imagens pularem de minhas órbitas como se estivesse assistindo ao filme da minha vida. Me vi sentada no banco da rodoviária, dezesseis anos nas costas - que estavam curvadas - a esperar pelo suposto amor da minha vida; o que me levaria para longe daquele inferno de cidade que morava. Vi seu rosto negro e lustroso na minha frente e senti as mesmas borboletas no estômago que da época - era meu retorno de vida.
Assustada com o que se passava em mim, tentei agarrar meu cândido mais forte - mas percebi que ele estava gelado. Gelado demais, pensei. Tentei raciocinar por um momento e lembrei de que eu não tinha ouvido seu choro, mal conseguia ressentir sua respiração como antes. E agora ele estava gelado em meus braços - um mármore em forma de anjo.
Não consegui mais colocar os panos em ordem, as idéias no lugar, nada. Apenas deitei minha cabeça no travesseiro alto da cama e adormeci, ainda com lágrimas caindo pelas minhas têmporas e molhando meu rosto também frio.
No outro dia, recebeu-se um relato no hospital de que uma mulher morreu com seu filho nos braços, a cabeça perto do coração. Morte súbita. Nunca se soube qual foi a causa, visto que o bebê estava em pleno estado de saúde.
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PS¹: O conto não tem nenhum apelo contra o aborto. Se quiserem saber a minha opinião, sim eu sou a favor do aborto. Afinal, só se tem um filho se você tiver condições de criá-lo.
PS²: Só porque tem uma suposta notícia no final não quer dizer que isso seja real - pelo contrário.
PS³: A música do título não tem nada a ver com o conto. É só o nome mesmo, a música em si não.