- Então, o que você vai querer?
- Sabe, eu estava pensando. Quais são as principais coisas que um ser humano deve fazer?
O homem, meio hesitante, pensou um pouco. Não parecia entender, mas respondeu assim mesmo:
- Talvez plantar uma árvore.
- E porque? - perguntou a menina.
- Talvez para ter um mundo melhor.
- Essa cidade é lotada de árvore e eu não vejo melhora nenhuma nesse mundo - rebateu ela, olhando para a fileira de livros acima de sua cabeça.
Seguiu-se um silêncio. O homem parecia meditar. Aproximou alguns milímetros seu rosto do pescoço dela, imperceptível. O cheiro dela era doce como laranja-cravo.
- Qual será a segunda? - Ela quebrou o gelo. O homem afastou-se abruptamente, parecendo ter levado um susto. Ela não percebeu, ainda fitava os livros na estante acima.
- Dizem que é ter filhos.
- Mas filhos só trazem mais desgraças. Veja, quanto mais filhos você tem, mais dinheiro você precisa. Logo, precisa trabalhar mais. Logo, não terá tempo de cuidar de seus filhos. E aí eles irão por caminhos errados e você vai ficar se culpando pelo resto da vida por ter feito sexo naquela noite, sendo que a camisinha ficava só no armário do banheiro ao lado.
- Isso é uma visão muito fria sua - rebateu ele, fitando aquele cabelo ruivo e ondulado, tentando não se entorpecer.
- E qual a sua visão acalorada? - perguntou ela, virando o rosto abruptamente para fitá-lo. Ele desviou os olhos, tímido.
- Não sei. Talvez um filho seja a sua maior realização por estar passando seu gene para frente. É como se fosse uma forma indireta de dizer que você ainda está nesse mundo. De uma forma ou de outra, parece ser bem interessante ter filhos. As mulheres ficam mais doces e dizem que os corações dos homens amolecem.
- Só nos primeiros seis meses. Depois vai ficando cada vez pior.
- Você não é fácil, hein? - comentou ele, soltando um sorrisinho de brincadeira. Ela não percebeu. Voltou o olhar para a estante à sua frente.
- Uma vez me disseram que para um homem ser feliz precisa escrever um livro.
Silêncio. O homem outra vez parecia meditar. As palavras entravam devagar na sua mente. Profundas. Ondulantes, como os cabelos ruivos dela. Alguns segundos depois, ele respondeu, com um fio de voz:
- Eu acho que essa daí é verdade.
- Porque? Você já escreveu um livro? - Ela pareceu empolgar-se. - Sente-se realizado?
- Não. Mas já tentei escrever e não deu muito certo. Me perdi nas idéias e depois, por falta de tempo, ou por mais alguns motivos que não lembro, acabei esquecendo e perdi o caderno.
- Então você não se sente realizado?
O homem abaixou a cabeça, pensativo. Aquela menina sempre o deixava com o pensamento longe. Mesmo sendo mais nova que ele, ela sempre tinha aquele ar de esperteza. E isso o deixava tão pensativo, às vezes cheio de lembranças. E foi exatamente naquela hora que ele se lembrou de quando começou a escrever, quando a idéia ainda parecia-lhe fresca na mente. A ansiedade de terminar tudo logo o consumia, aquele desejo ardente de contar sua história. E, com o passar dos dias, a angústia da falta de tempo foi aumentando, a cabeça cheia de tudo, menos de idéias novas para o seu livro. Sentiu-se vazio. Encarava aquela folha de papel branca, com as linhas azuis escuras. Irritado, ele jogou o caderno no lixo e foi dormir.
- Não se sente realizado? - repetiu ela, acordando-o do sonho num susto.
- Não sei ao certo. Sempre fui rodeado de livros. Por toda minha vida sempre gostei de ler, escrever, pesquisar, observar, tudo que envolvesse leitura e escrita. Mas quando fui tentar, não deu muito certo.
- Aposto que faltou inspiração.
O homem hesitou. Respirou profundamente, tentando não dar margem as suas lembranças.
- Talvez. É. Acho que sim.
Agora ela estava abaixada, olhando os livros da última prateleira. Ele fitava suas costas nuas curvadas, a coluna tão reta aparecendo por debaixo da pele branca. Algumas sardas se espalhavam pelo corpo. Ele tentou não pensar em como seria ela totalmente nua.
Ela se levantou. Passou a mão pelos livros a sua frente, procurando algo sem muito interesse. Parecia despreocupada, apesar das olheiras entregarem que ela passou a noite em claro. Onde? - perguntou-se o homem. Em boates? Em bares? Lendo?
Ele seguia seus movimentos, complacente, esperando algo mais. Estava prestes a fazer a pergunta de todos os dias quando ela falou:
- Onde você procura inspiração?
- Como assim?
- Para terminar o seu livro. Ou para tê-lo começado. De onde veio? E para onde foi?
- Não sei. Já li que os grandes escritores conseguem tirar seus melhores personagens do meio em que eles vivem. Do mundo mesmo, sabe? Mas, de repente, tudo para mim pareceu tão sem sentido.
Outro silêncio. Agora quem parecia pensar era ela. Fitava o livro que havia tirado da estante, sem abrí-lo. Só olhava a capa.
- Eu posso te dar uma dica? - perguntou ela.
- Claro.
- Veja só: eu venho aqui todo santo dia, procuro um livro interessante, mas nunca tenho dinheiro para comprar nada. Venho, olho essas prateleiras tanto que já sei de cor onde fica cada livro. E nunca acho nada interessante. Quando acho, não tenho dinheiro. Isso não parece pertinente para você?
- Sim. Parece. - Ele franziu o cenho, ainda meio que sem entender.
- Então o que você está esperando para ir escrever sobre essa personagem que eu acabei de criar?
Foi como se o mundo ao seu redor clareasse. De repente, aquele aparente vendedor comum de uma livraria pequena no centro da cidade estava totalmente aliciado por uma nova idéia. Aquela garota, que antes ele nem chegava a dar atenção, lhe pareceu mais interessante do que ele havia sequer imaginado. Os gestos dela, por mínimos que fossem, pareciam cada um contar uma história. Solitários. E juntos. Tudo ao mesmo tempo. Ela era uma mistura de vários livros, de várias histórias jamais contadas. Histórias novas e antigas. Modernas e oldschool. Tudo nela era uma história diferente, e ele queria contar uma, ou todas aquelas histórias. Todas. Era isso. Ele queria contar sobre ela. Em seu livro.
Ela seria o seu livro.
Como por piloto automático, ele refez a pergunta de todos os dias, mas não pareceu ouvir quando ela respondeu:
- Vou querer o seu livro.