terça-feira, 18 de outubro de 2011

Dezes(sete) anos de manhãs com sono

Os primeiros raios da manhã atravessavam as janelas de vidro pintadas de vermelho e verde, refletindo formas irregulares sobre a mesa de madeira lotada de papéis rabiscados. Entre canetas e copos de café, cores e formas irregulares se espalhavam por cima da mesa, terminando por incidir sobre o cabelo dourado da menina. Ela tinha dezessete anos de noites em claro e sete de manhãs com sono.  

O quarto era só silêncio e suspiros. Deitada sobre o braço em cima da mesa, ainda segurando a caneca de café, ela adormecia entre pequenos montes de papéis com contos inacabados, rabiscos de desenhos incompletos, frases e palavras sem nexo. Por mais profundo que parecesse seu sono, não duraria muito – tanto que, logo quando sentiu o calor do sol na cabeça, acordou num susto. Entreabrindo os olhos e tentando não se mexer (para não perder o filete de sono), ela levantou da cadeira de madeira e caiu por cima das almofadas do sofá cama.

Tentava, desesperadamente, adormecer de uma vez por todas – por duas, cinco horas ininterruptas. Nunca conseguia. Estava nessa rotina dormente há pelo menos sete anos, desde que... Não gostava nem de se lembrar. As luzes vermelhas piscando voltavam a sua mente com força, e ela tentou desviar o pensamento colocando um travesseiro no rosto – empatando o sol.

Não adiantou. Como se vivesse o roteiro da mesma peça todos os dias, automaticamente e sem nenhuma expressão, ela se levantou e foi à cozinha, preparar um café. Voltou com a caneca soltando vapor, e mais uma vez se sentou à mesa. De frente para a máquina de escrever, ela fitava a manhã nascer lá fora, através das suas janelas de vidro verde e vermelho. Soltou um suspiro profundo, e na tentativa de tentar organizar (pela enésima vez) seus pensamentos, bebeu um gole de café, deixou a caneca de lado e pôs-se a digitar na máquina de escrever.

Dialogava o tempo inteiro com a página em branco. Escrevia uma linha, não gostava. Tirava o papel e amassava. Então escrevia outra, gostava e continuava. Mas no segundo parágrafo, desistia. Pegava o papel e tentava escrever a mão. Não funcionava. Não sabia por qual caminho seguir. Era difícil se decidir. Sentia tudo ao mesmo tempo, e imaginava fotografias, falas e diálogos soltos, sem nenhuma conexão um com o outro. Perdendo a paciência, se levantou da mesa e pegou sua caneca. Decidiu colocar música para tocar. Gostava de ouvir música clássica pela manhã – Bach ou Beethoven. Seu avô, falecido, dizia que música clássica ajudava os neurônios a trabalharem melhor. “Em sincronia”, dizia ele. Ela acreditava, e colecionava CDs de coletâneas com os maestros mais famosos do mundo.

Deixou que a Nona Sinfonia  fosse quebrando o silêncio do quarto em pequenos pedacinhos de orquestra, adicionando instrumentos aqui e ali, aos poucos aumentando de volume e grandiosidade. Nessa parte, ela não conseguia evitar o sorriso, e dava ritmo a seu passo por dentro da pequena casa. Agora a manhã já ia acordada, assim como seus vizinhos, que começavam a varrer os pequenos jardins, tapetes e calçadas em frente ao dela. Decidiu pôr um vestido e sair de casa. Do lado de fora, observou as seis casinhas coladas uma na outra, emparelhadas, diferentes apenas pelas cores: azul turquesa, azul clara, rosa forte, lilás e roxo. Nas duas primeiras, um senhor de idade e uma senhora de vestido florido bem usado varriam a frente das suas respectivas casas. 

Ela deu bom dia ao casal de melhor idade, e encostada na lateral da porta, terminou seu café. De repente, olhando para a divisão da sua porta - da sua casa - para a vizinhança, decidiu que não mais iria tentar dormir aquela manhã. Exatamente quando ela entrou de volta em casa, a Nona Sinfonia tinha seu momento mais clássico, em que um coral feminino toma a vez dos violinos. Assim, com um sorriso no rosto provocado pela música, ela decidiu finalmente se organizar.

Começou abrindo todas as janelas, deixando o apartamento arejado. Então foi direto à mesa de madeira, pegando de bolo todos os papéis que saberia que não mais iria usar - estavam ali apenas fazendo volume desnecessário. Enquanto arrumava suas coisas, o disco na vitrola tocava, atraindo olhares até mesmo dos vizinhos. "A Lisa acordou disposta hoje, ein, Harold?" comentou a senhora da casa azul clara. "É verdade. Tá até com as janelas todas abertas!" concordou o senhor da casa azul turquesa.

Lá fora, a manhã já ia disposta, e pela primeira vez nos seus dezessete anos de insônia, Lisa passava uma manhã sem sono.