domingo, 10 de fevereiro de 2008

Estrela

"Tanto que na hora que a Susi foi embora, com todo mundo dentro do carro, do mesmo jeito que veio, eu nem percebi que ela havia me deixado lá no bar, de cabeça abaixada na bancada, perdendo o meu limite."

Eu virei meu whisky com muito gelo de uma vez só, assim que o garçon colocou no meu último copo. Eu já estava pra lá e aquele era meu último copo: Sim, eu havia decidido! Era meu último copo.
Virei em menos de dois segundos, "meu recorde", pensei. Fiquei um tempinho ali, outro acolá. Na festa não tinha mais quase ninguém, só os pinguços como eu. Os que restam, os restos mortais. Quase cadáveres deitados na pista de dança, rindo a tôa com um copo de bebida na mão.
Eu não me juntei a eles, mas abaixei a cabeça pra passar o ardor inicial do álcool, levantei, peguei minha jaqueta de couro marrom bordada e fui para casa.

Acabei, alguns minutos depois de sair da festa e pegar o ônibus, percebendo que não tinha mais dinheiro. Portanto, como moro longe e, do lugar de onde eu estava, preciso pegar dois ônibus para chegar em casa, resolvi ir o resto do caminho andando mesmo. Só assim passava um pouco o meu porre e eu não tinha que receber "porres" da minha mãe ou qualquer outra pessoa da fazenda.
Desci na parada perto da estrada que dá para minha casa. Fui andando; eu sabia, a caminhada era longa, mas me fazia bem. Gostava de andar desde pequena e com certeza não chegaria em casa colocando os bofes pra fora.
A estrada estava cheia de neblina, o dia estava quase amanhecendo, só faltava uma pequena gotinha de nada para os primeiros raios de sol aparecerem. Como moro em uma cidade onde tudo é mais claro primeiro, percebi isso assim que desci do ônibus.

O meu andar meio torto, perâmbulante, irritava a estrada vazia, sem nenhum sequer carro passando. O cheiro de manhã me invadia, e eu me sentia leve e solta. Fui andando até chegar a uma plantação de trigo.
O trigo tem uma cor amarela muito forte, e em qualquer que e seja a luzinha, ele se ilumina tanto que parece ter brilho próprio. Até à luz dos postes eles brilham, tanto que ao passar de madrugada ali, alguns caminhoneiros param e ficam só observando a beleza que é aquele lugar. Um campo gigantesco só com plantação de trigo. Que espetáculo!

Os raios de sol vão saindo e torrando as minhas retinas. Eu paro um minuto de andar, vejo uma cerca perto da plantação e vou até lá. Me sento em um dos pedaços de madeira e fico a observar o amanhecer do dia. O rei está recebendo suas reverências.
Eu fico ali observando os trigos balançarem de um lado para o outro, seguindo o ritmo do vento. A mágica do amarelo-ouro que soltam, o calor vibrante da cor, os raios de sol, tudo se mistura e eu nem me sinto mais tão mal quanto estava antes. Na realidade, me sinto muito bem.

O sol sai por completo e começa a torrar tudo de uma vez, não só as minhas retinas. Mas eu não me abalo, continuo no mesmo lugar, sentada. O trigo me hipnotiza, até que de repente tomo um susto por sentir duas mãos geladas atrás de mim, segurando a minha cintura, como se me protejesse de que eu pudesse cair. Soltei um "Me larga!" super rápido e talvez um pouco alto demais, tão que as mãos soltaram-se de mim e eu consegui ouvir um "Desculpe" ciciante*. Olhei pra trás e vi um menino, talvez ele devia ter a minha idade ou quem sabe mais, não consegui definir logo de cara. Ele tinha o rosto liso, a pele estava bem clareada e em tons de laranja-claro por conta do sol. Fiquei-o olhando por alguns segundos e desci de onde estava sentada.

- Quem é você? - perguntei, intrigada.
- Eu sou eu. - ele respondeu, intrigado do mesmo modo que ela.

De repente ele apenas me deu as costas e continuou andando, de uma forma rápida, cujo eu não conseguia alcançar. Ou só conseguia com dificuldade. Mas como podia ele apenas dizer que era ele, - lógico, disso eu sabia - sem nem me dar ao menos um nome? um idade? algo concreto?
Pelo fato de eu ter ficado intrigada, corri - quase literalmente - atrás dele, gritando por "Ei" já que não sabia o nome daquele mistério de pessoinha que surgiu na minha frente.

- Dá pra esperar? - gritei mais uma vez.
Ele parou um segundo, e quando eu já estava me aproximando, quase conseguindo ficar ao seu lado, ele apressa o passo de novo.
- Que pressa é essa, tá correndo da cruz é? - falei - Eu sou tão feia assim que assusto? - resmunguei, dessa vez.
- Não. - respondeu e parou.
Caminou devagar até uma árvore e sentou-se na sombra dela. Eu fiquei-o observando, parada um instante, fazendo um tipo de arco na região dos meus olhos para que eu pudesse ver o que se passava ali. Acabei indo juntar-me a ele. Afinal, naquele sol escaldante eu não ia ficar.
- Agora você pode ao menos me dizer seu nome?
Ele não respondeu de imediato. Ficou inerte e pensativo de uma forma muito sexy e chamativa, coisa que depois de um tempo a observá-lo, notei que adorava. Então ele começou a contar-me a história de sua vida.

Então permanecemos ali por muito tempo. Talvez até o entardecer do dia. Perdi totalmente a noção do tempo e quando vi, o sol já estava se pondo. Eu deveria ir pra casa.
- Eu te levo.
- Tudo bem.
Os seus olhos econtraram-se com os meus e, por um momento, eu esqueci da Susi, esqueci da minha casa, esqueci que estava ali, em pé no meio da estrada pintada de trigo. Quase me senti levitar por um tempo.
Ele me pegou na mão e me levou pra casa.


*ciciante: retirado(e adaptado) do blog ciciando, que significa pronunciar palavras em voz baixa, murmurando. murmurar, rumorejar, e afins.