terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Meio porcento de vida

Um tilintar de chaves. Longe, distante. Eu estava em casa, sozinho. Não sabia exatamente porquê, mas não tinha ligado a TV ao entrar em casa. Nem me lembrava direito como tinha parado ali. Sentado no sofá, acendi um cigarro. Ouvia apenas o silêncio, quando o barulho de chaves surgiu.

Não era contínuo, o tilintar. Ouvi entre uma tragada e outra, quase não prestei atenção. Vinha de longe, talvez do terceiro andar. Apaguei o cigarro. De repente, me senti alerta, como um vigia noturno. Tentava ao máximo expandir minha audição - se é que era possível fazer uma coisa dessas - e procurar, de onde vinham aquelas chaves.

Até que o silêncio tomou conta de tudo, como um véu cobrindo os móveis, as paredes, o chão, eu. Fiquei ali, sentado, preso no silêncio, sem respirar. Devo ter ficado pelo menos cinco minutos assim. "O que diabos você está fazendo?", pensei, quase em voz alta. Quando mudei o olhar da TV para a porta, aconteceu de novo. O barulho de chaves.

Agora estava mais perto. E mais frequente. Era como se uma criança muito pequena estivesse brincando com elas, mexendo-as suavemente com aquela curiosidade ímpar que só encontramos em pessoas com meio porcento de vida. Mas o barulho se aproximava. E começava a espalhar-se, a cobrir o véu do silêncio, a tomar conta de mim. Mais forte, mais intenso, mais próximo.

Pensei em ligar a televisão, em abrir as torneiras, em ligar o som e colocar o celular no viva-voz. Mas eu precisava ser corajoso. Então, deixei que o barulho se aproximasse ao máximo. Até chegar a minha porta. Então, parou. O próximo som que ricocheteou todo meu apartamento parcialmente vazio, foi o da campainha.

Levantei e abri a porta. Era ela, do terceiro andar. Usava um vestido amarelo, meio desbotado. Esticou o braço com a chave na ponta dos dedos.
- Você esqueceu ontem. Encontrei aqui no chão, jogadas no tapete.
Sua voz era fria e sem sentimento algum. Como pode uma pessoa viver por tanto tempo com você, dividindo todas as contas, ser sua melhor amiga, mulher, tudo o que você sempre sonhou, e passar a tratar você assim, como se fosse um desconhecido? Não, era pior do que um desconhecido. Era como se fosse uma fala no interfone, uma mensagem no viva-voz, apenas um recado frio e mecânico. "Pega as chaves, por favor".
- Obrigado - respondi, inaudível, e ela não parou para perguntar o que eu tinha dito. Rapidamente afastou-se, subindo as escadas de volta ao seu apartamento tão distante e ao mesmo tempo tão perto.

Fechei a porta atrás de mim e finalmente, pude tirar os sapatos, a camiseta do trabalho, ligar a TV e pensar no jantar.